17/09/2018

Pinga, pinga, pinga. Água. Pia. Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Relógio. Que dia é hoje? Cama. Hospital. Não. Hospício. Por quê? Eu não sou louco. Lâmpada. Globo. Glóbulos. Sangue. Medo. Eu não sou louco. Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Ou pelo menos não era. Nenhum de nós era.
É difícil lembrar, separar o que era realidade e o que os médicos afirmam ser fruto de minha imaginação. Os advogados argumentaram que a culpa era dos hormônios da adolescência e dos pais ausentes. Mas não era. De uma coisa tenho certeza: os problemas realmente começaram com a notícia.
Brianna Louise havia morrido. Nós fomos ao enterro da antiga colega de classe que agora parecia ser a queridinha de todos — Deus sabe o inferno que passou nos dois anos do ensino médio —, que fingiam para os parentes dela que eram amigáveis e amavam minha preciosa Brie. Vesti o terno, a gravata e até mesmo consegui soltar algumas lágrimas. Gostava dela quase tanto quanto gosto de respirar, mas nunca disse uma palavra sobre meus sentimentos ou até mesmo para defendê-la dos adolescentes diabólicos do Colégio St. Vladimir.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Meu tempo está acabando. Preste atenção: tenho certeza que minha Brie estava morta. Vi seu corpo no caixão branco com arabescos quase tão dourados quanto meus cabelos. Vi a maquiagem feita pela funerária para esconder os hematomas e o batom claro para lhe dar um ar mais infantil, que me faziam imaginá-la com os grandes e tristonhos olhos castanhos fixos nos meus azuis. Toquei em seu cabelo, que ainda estava tão macio quanto em vida, com os cachos acobreados arrumados de forma perfeita com as flores vermelhas em volta. E toquei em sua mão gélida.
Alguns dias depois, todos estavam deitados de barriga para cima na tarde de verão quente, ignorando completamente uma professora rabugenta de educação do corpo. Ninguém comentava sobre Brianna, ninguém sequer se lembrava.
— Quero que sejam todos gentis com a nova aluna. — falou a professora, conquistando momentaneamente a atenção de todos, principalmente dos garotos.
Acolhida por um dos braços dela estava a garota, com os cabelos cobrindo o rosto e olhando para o chão, com uma das mãos segurando a alça da mochila. Embora os médicos digam que não, lembro-me dos shorts de academia e da camiseta preta colada ao corpo e, mesmo antes de ela levantar a cabeça, sabia que conhecia aqueles cabelos — já havia passado a mão neles incontáveis vezes. Mas precisava de uma certeza. E tive essa certeza quando os grandes olhos castanhos contornados por maquiagem preta fixaram-se em mim.
— Brie? — perguntei, num sussurro que só os mais próximos de mim podiam escutar. Eles estavam vendo o mesmo que eu. Brianna Louise, exatamente igual e absurdamente diferente, de pé na nossa frente.
— Prazer, gente. Sou Anna. — disse a garota, ainda com os olhos fixos no nosso grupo, fixos em mim.
Até a voz é idêntica. Era minha Brie. Mas como? Não só vi como a senti morta. Vi todos os hematomas escuros em seu corpo, vi o caixão descer e receber uma chuva de rosas e terra preta. Animada, como toda aluna nova postava-se a fazer tudo que a professora pedia e mostrava seu corpo de forma que Brianna nunca faria, nunca teria coragem. Logo, havia uma horda de garotos atrás dela, enfeitiçados com sua simpatia, e um formigueiro de garotas juntas num canto, espumando de inveja.
Se pensa que ia ser apenas assim, que era delírio de um bando de adolescentes verem uma garota que estava morta, se enganou. Ela voltou para se vingar, disso tenho certeza. Aquela foi a pior semana da vida de cada um de nós. E o primeiro foi James.
Meu estômago revirou quando saí da sala naquele dia e encontrei-a aos beijos com James. Convenci-me definitivamente que Anna e Brianna eram pessoas completamente diferentes — afinal, ela nunca faria algo assim comigo e muito menos ficaria com alguém que participou de sua amostra grátis de inferno na Terra. Porém, quando voltamos para a aula, apenas dez minutos depois, ele começou a passar mal: vomitava um líquido preto e revirava os olhos, em seguida caía no chão e começava a se contorcer. Todos estavam em pânico. Menos ela, que continuava sentada na sua carteira olhando fixamente para o cenário e girando um pirulito cor-de-rosa nos lábios. Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Algumas batidas de relógio depois, James levantou-se como se nada estivesse acontecido, parecendo perdido.
Aconteceu de novo, agora com Luís. Os rumores eram que eles haviam se agarrado no banheiro feminino no primeiro horário, mas ela compareceu às outras aulas e ele não. Até que um grupo de meninas do primeiro ano saíram desesperadas do banheiro, chorando e histéricas — o garoto foi encontrado desacordado e ensopado do pescoço para cima. Aparentemente, alguém achou legal enfiar sua cabeça por tempo demais no sanitário, assim como Brie me disse uma vez que ele tinha feito e eu não acreditei.
E assim seguiu uma horda de acontecimentos estranhos no St. Vladimir, mas nenhum com evidências suficientes para o que me era óbvio: Brianna queria se vingar, daqueles que a torturaram e daqueles que fingiram tristeza naquela tarde chuvosa no cemitério. Alguns alunos foram encaminhados para psicólogos e psiquiatras, alegando estar vendo coisas estranhas ou sendo perseguidos e com medo do que os médicos afirmavam que não passava de alucinações.
Eu estava em pânico. Todos os dias eu acordava no meio da madrugada, suando frio depois de um pesadelo e sentia o vento entrar pela janela que tinha certeza de ter fechado. Com os olhos fechados, a ouvia sussurrar coisas bonitas que me faziam flutuar e logo depois uma torrente de tristezas que me levavam à beira do precipício da depressão. Quando estava acordado, via ela no espelho, nas poças d’água e em qualquer outro lugar para o qual ousasse olhar. E no colégio não era diferente: a versão Anna fazia questão de, sempre que passava ao lado de minha mesa, traçar uma linha fina, fraca e sensual com a ponta do lápis, percorrendo toda a extensão do braço, com um sorriso de lado e o tão comum pirulito cor-de-rosa.
Eu estava em pânico. Tão em pânico que um dia, duas horas da manhã, decidi tomar uma atitude drástica: queria tirar a limpo aquela história. Saí de casa às escondidas e fui para o cemitério em que minha Brie estava enterrada e não precisei nem de meia hora para achar a lápide. No silêncio da noite, o único barulho existente era o baque da pá entrando e saindo da terra, aprofundando cada vez mais até bater no caixão encardido. Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Conseguia sentir o vulto me rondando, seus sussurros e seu tão familiar choro. Via sua silhueta escorada numa árvore a poucos metros, me desafiando a fazer o que viera fazer: conferir se seu corpo estava dentro do caixão. Estava completamente hipnotizado por sua figura, que parecia com a Anna e com minha Brie, o rosto angelical e infantil contrastando com a minissaia e a blusa curta.
— Venha cá, Max.
Sua voz ecoou na noite e sem nem raciocinar, senti meu corpo saindo da cova e seguindo na sua direção, até estar apenas alguns centímetros dela. Brie/Anna passou os dedos suavemente por meu braço e chegou os lábios perto de meu ouvido para um sussurro que me fazia derreter por dentro e gelar da ponta dos pés até a raiz do cabelo.
— Sabia que você gostava de mim. — disse e passou a sussurrar no outro ouvido. — E eu também gostava muito de você. Mas sabe qual era o problema? Você é covarde.
Uma pancada na cabeça e o liquido quente descendo pela minha testa foi o último lapso daquela noite. Passaram segundos, horas ou dias, não saberia dizer. Só sei que acordei exatamente onde estou agora.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Olho mais uma vez para o relógio de parede alguns metros na minha frente, perto do teto, no abismo de branco e cinza que é aquele quarto. Oito horas e trinta minutos. Nesse exato momento entram dois caras vestindo roupas igualmente descoradas e tentam me imobilizar. Me contorço, debato e luto com todas as minha forças antes de conseguirem fazer o comprimido branco descer goela abaixo. Não demora muito e vou estar fora do ar. Os homens saem do quarto.
Eu não sou louco.
— Tique-taque, tique-taque, tique-taque.


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*Imagem usada com url original. 
*Texto de autoria própria.

2 comentários

Oi Sarah, tudo bem?
Que conto extraordinário! Eu amei! Tu escreves muito bem!!

Um beijo!

itsacrosstheuniverse.blogspot.com

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Hey! Muito obrigada <3

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