Conto fantástico - Relógio
Pinga, pinga, pinga. Água. Pia. Tique-taque,
tique-taque, tique-taque. Relógio. Que dia é hoje? Cama. Hospital. Não.
Hospício. Por quê? Eu não sou louco. Lâmpada. Globo. Glóbulos. Sangue. Medo. Eu
não sou louco. Tique-taque, tique-taque,
tique-taque. Ou pelo menos não era. Nenhum de nós era.
É difícil lembrar, separar o que
era realidade e o que os médicos afirmam ser fruto de minha imaginação. Os
advogados argumentaram que a culpa era dos hormônios da adolescência e dos pais
ausentes. Mas não era. De uma coisa tenho certeza: os problemas realmente
começaram com a notícia.
Brianna Louise havia morrido. Nós
fomos ao enterro da antiga colega de classe que agora parecia ser a queridinha
de todos — Deus sabe o inferno que passou nos dois anos do ensino médio —, que
fingiam para os parentes dela que eram amigáveis e amavam minha preciosa Brie. Vesti
o terno, a gravata e até mesmo consegui soltar algumas lágrimas. Gostava dela
quase tanto quanto gosto de respirar, mas nunca disse uma palavra sobre meus
sentimentos ou até mesmo para defendê-la dos adolescentes diabólicos do Colégio
St. Vladimir.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Meu tempo está acabando.
Preste atenção: tenho certeza que minha Brie estava morta. Vi seu corpo no caixão
branco com arabescos quase tão dourados quanto meus cabelos. Vi a maquiagem
feita pela funerária para esconder os hematomas e o batom claro para lhe dar um
ar mais infantil, que me faziam imaginá-la com os grandes e tristonhos olhos
castanhos fixos nos meus azuis. Toquei em seu cabelo, que ainda estava tão
macio quanto em vida, com os cachos acobreados arrumados de forma perfeita com
as flores vermelhas em volta. E toquei em sua mão gélida.
Alguns dias depois, todos
estavam deitados de barriga para cima na tarde de verão quente, ignorando
completamente uma professora rabugenta de educação do corpo. Ninguém comentava
sobre Brianna, ninguém sequer se lembrava.
— Quero que sejam todos gentis
com a nova aluna. — falou a professora, conquistando momentaneamente a atenção
de todos, principalmente dos garotos.
Acolhida por um dos braços dela
estava a garota, com os cabelos cobrindo o rosto e olhando para o chão, com uma
das mãos segurando a alça da mochila. Embora os médicos digam que não,
lembro-me dos shorts de academia e da camiseta preta colada ao corpo e, mesmo
antes de ela levantar a cabeça, sabia que conhecia aqueles cabelos — já havia
passado a mão neles incontáveis vezes. Mas precisava de uma certeza. E tive
essa certeza quando os grandes olhos castanhos contornados por maquiagem preta
fixaram-se em mim.
— Brie? — perguntei, num
sussurro que só os mais próximos de mim podiam escutar. Eles estavam vendo o
mesmo que eu. Brianna Louise, exatamente igual e absurdamente diferente, de pé
na nossa frente.
— Prazer, gente. Sou Anna. —
disse a garota, ainda com os olhos fixos no nosso grupo, fixos em mim.
Até a voz é idêntica. Era minha
Brie. Mas como? Não só vi como a senti morta. Vi todos os hematomas escuros em
seu corpo, vi o caixão descer e receber uma chuva de rosas e terra preta.
Animada, como toda aluna nova postava-se a fazer tudo que a professora pedia e
mostrava seu corpo de forma que Brianna nunca faria, nunca teria coragem. Logo,
havia uma horda de garotos atrás dela, enfeitiçados com sua simpatia, e um
formigueiro de garotas juntas num canto, espumando de inveja.
Se pensa que ia ser apenas assim,
que era delírio de um bando de adolescentes verem uma garota que estava morta,
se enganou. Ela voltou para se vingar, disso tenho certeza. Aquela foi a pior
semana da vida de cada um de nós. E o primeiro foi James.
Meu estômago revirou quando saí
da sala naquele dia e encontrei-a aos beijos com James. Convenci-me
definitivamente que Anna e Brianna eram pessoas completamente diferentes —
afinal, ela nunca faria algo assim comigo e muito menos ficaria com alguém que
participou de sua amostra grátis de inferno na Terra. Porém, quando voltamos
para a aula, apenas dez minutos depois, ele começou a passar mal: vomitava um
líquido preto e revirava os olhos, em seguida caía no chão e começava a se
contorcer. Todos estavam em pânico. Menos ela, que continuava sentada na sua
carteira olhando fixamente para o cenário e girando um pirulito cor-de-rosa nos
lábios. Tique-taque, tique-taque,
tique-taque. Algumas batidas de relógio depois, James levantou-se como se
nada estivesse acontecido, parecendo perdido.
Aconteceu de novo, agora com
Luís. Os rumores eram que eles haviam se agarrado no banheiro feminino no
primeiro horário, mas ela compareceu às outras aulas e ele não. Até que um
grupo de meninas do primeiro ano saíram desesperadas do banheiro, chorando e
histéricas — o garoto foi encontrado desacordado e ensopado do pescoço para
cima. Aparentemente, alguém achou legal enfiar sua cabeça por tempo demais no
sanitário, assim como Brie me disse uma vez que ele tinha feito e eu não
acreditei.
E assim seguiu uma horda de
acontecimentos estranhos no St. Vladimir, mas nenhum com evidências suficientes
para o que me era óbvio: Brianna queria se vingar, daqueles que a torturaram e
daqueles que fingiram tristeza naquela tarde chuvosa no cemitério. Alguns
alunos foram encaminhados para psicólogos e psiquiatras, alegando estar vendo
coisas estranhas ou sendo perseguidos e com medo do que os médicos afirmavam que
não passava de alucinações.
Eu estava em pânico. Todos os
dias eu acordava no meio da madrugada, suando frio depois de um pesadelo e
sentia o vento entrar pela janela que tinha certeza de ter fechado. Com os
olhos fechados, a ouvia sussurrar coisas bonitas que me faziam flutuar e logo
depois uma torrente de tristezas que me levavam à beira do precipício da
depressão. Quando estava acordado, via ela no espelho, nas poças d’água e em
qualquer outro lugar para o qual ousasse olhar. E no colégio não era diferente:
a versão Anna fazia questão de, sempre que passava ao lado de minha mesa,
traçar uma linha fina, fraca e sensual com a ponta do lápis, percorrendo toda a
extensão do braço, com um sorriso de lado e o tão comum pirulito cor-de-rosa.
Eu estava em pânico. Tão em
pânico que um dia, duas horas da manhã, decidi tomar uma atitude drástica:
queria tirar a limpo aquela história. Saí de casa às escondidas e fui para o
cemitério em que minha Brie estava enterrada e não precisei nem de meia hora
para achar a lápide. No silêncio da noite, o único barulho existente era o
baque da pá entrando e saindo da terra, aprofundando cada vez mais até bater no
caixão encardido. Tique-taque,
tique-taque, tique-taque. Conseguia sentir o vulto me rondando, seus
sussurros e seu tão familiar choro. Via sua silhueta escorada numa árvore a
poucos metros, me desafiando a fazer o que viera fazer: conferir se seu corpo
estava dentro do caixão. Estava completamente hipnotizado por sua figura, que
parecia com a Anna e com minha Brie, o rosto angelical e infantil contrastando
com a minissaia e a blusa curta.
— Venha cá, Max.
Sua voz ecoou na noite e sem nem
raciocinar, senti meu corpo saindo da cova e seguindo na sua direção, até estar
apenas alguns centímetros dela. Brie/Anna passou os dedos suavemente por meu
braço e chegou os lábios perto de meu ouvido para um sussurro que me fazia
derreter por dentro e gelar da ponta dos pés até a raiz do cabelo.
— Sabia que você gostava de mim.
— disse e passou a sussurrar no outro ouvido. — E eu também gostava muito de
você. Mas sabe qual era o problema? Você é covarde.
Uma pancada na cabeça e o
liquido quente descendo pela minha testa foi o último lapso daquela noite.
Passaram segundos, horas ou dias, não saberia dizer. Só sei que acordei
exatamente onde estou agora.
Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Olho mais uma vez para o
relógio de parede alguns metros na minha frente, perto do teto, no abismo de
branco e cinza que é aquele quarto. Oito horas e trinta minutos. Nesse exato
momento entram dois caras vestindo roupas igualmente descoradas e tentam me
imobilizar. Me contorço, debato e luto com todas as minha forças antes de
conseguirem fazer o comprimido branco descer goela abaixo. Não demora muito e
vou estar fora do ar. Os homens saem do quarto.
Eu não sou louco.
— Tique-taque, tique-taque, tique-taque.
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*Imagem usada com url original.
*Texto de autoria própria.
2 comentários
Oi Sarah, tudo bem?
REPLYQue conto extraordinário! Eu amei! Tu escreves muito bem!!
Um beijo!
itsacrosstheuniverse.blogspot.com
Hey! Muito obrigada <3
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